Fernando Filgueiras
“Variam os comentários. Uns querem ver nisto indiferença pública, outros descrença, outros abstenção. No que todos estão de acordo, é que é um mal, e grande mal. Não digo que não; mas há um abismo entre mim e os comentadores; é que eles dizem o mal, sem acrescentar o remédio que há de curar o doente. Tudo está em acertar com a causa da moléstia. (…)
Resta-nos a indiferença; mas nem isto mesmo admito. Indiferença diz pouco em relação à causa real, que é a inércia. Inércia, eis a causa! Estudai o eleitor; em vez de andares a trocar as pernas entre três e seis horas da tarde, estudai o eleitor. Achá-lo-ei bom, honesto, desejoso da felicidade nacional. Ele enche os teatros, vai às paradas, às procissões, aos bailes, aonde quer que há pitoresco e verdadeiro gozo pessoal. Façam-me o favor de dizer que pitoresco e que espécie de gozo pessoal há em uma eleição? Sair de casa sem almoço (em domingo, note-se!), sem leitura de jornais, sem sofá ou rede, sem chambre, sem um ou dois pequerruchos, para ir votar em alguém que o represente no Congresso, não é o que vulgarmente se chama de caceteação? Que tem o eleitor com isso? Pois não há governo? O cidadão, além dos impostos, há de ser perseguido com eleições? (…)
Que fazer? Aqui entra a minha medicação soberana. (…) O eleitor não vai à urna, a urna vai ao eleitor.”
Os trechos do texto acima foram retirados de uma crônica de Machado de Assis publicada em 7 de agosto de 1892, em A Semana. Pouco depois do golpe que deu início à República no Brasil, já se percebia dificuldades no que diz respeito ao exercício da cidadania. Argumentos pitorescos para os dias de hoje, diriam os mais apressados. Porém, no Brasil, é um tema velho em roupagens novas. O tema da desconfiança e da indiferença dos eleitores em relação aos processos eleitorais é comumente apontado como um dos principais problemas relacionados à legitimidade do regime democrático no Brasil.
De fato, o Brasil é um dos campeões da desconfiança. Diria um dos lados do debate que isto é retrato do déficit de democratização no Brasil. Do outro lado do debate, alguns diriam que esta desconfiança é sinal da vitalidade da democracia no Brasil, à medida que representaria a emergência de cidadãos críticos e mobilizados para a defesa de seus interesses, uma vez que insatisfeitos com o regime.
Mas, de fato, mais preocupante do que a desconfiança (ou descrença como preferiria Machado) é a indiferença e a inércia. Talvez vivamos um tempo em que a indiferença em relação à política, especialmente na dimensão da representação eleitoral, seja a marca mais saliente de nossa democracia. Não importa a coloração e o discurso ideológico, a posição contra ou a favor do aborto, contra ou a favor a presença de bebidas nos estádios, durante a Copa de 2014. Drummond estava errado. Não estamos no tempo dos partidos, muito menos de homens partidos. Vivemos o tempo da indiferença, da indiferença em relação ao debate, às posições públicas assumidas pelos representantes e aos temas candentes da esfera pública.
E mais preocupante do que a indiferença dos cidadãos é a indiferença alimentada pelas instituições. No afã de corrigir as mazelas do processo eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral, a quem cabe zelar pelo bom andamento das eleições, toma a decisão de proibir a veiculação de propaganda no Twitter. As instituições da democracia brasileira têm cuidado de afastar o eleitor das urnas, como se ele já não tivesse gozos melhores e mais proveitosos do que sair em um domingo sem almoço para exercer sua cidadania.
No mínimo, esta é uma decisão que proíbe o debate, a explicitação de posições públicas, de opiniões sobre a coletividade que qualquer pessoa que se arvore o papel de representante de alguma coisa ou de alguém deve ter. Alimentar a indiferença do cidadão e dos homens partidos é alimentar soluções autoritárias, em que o remédio para corrigir as mazelas da política matam o doente por inteiro. Alimenta-se um demiurgo que surge calado e que não tolera o exercício da diferença!
Nesse caso, para o avivamento da democracia brasileira, na ânsia de reduzir a descrença dos eleitores, levemos as urnas aos cidadãos. E levar as urnas aos cidadãos significa fortalecer o debate e a publicidade das posições que os homens partidos, porque diferentes e não indiferentes, devem ter. Olhemos para o eleitor. Porque se ele for indiferente, não tolerará as diferenças, porquanto submetido à inércia do cotidiano. Machado de Assis, certamente, sabia do que estava falando.
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